Eu acreditava
que aquela seria mais uma noite comum de dezembro, com os mesmos atrativos de
sempre - calor, mosquitos e notas baixas publicadas no site da faculdade, mas
eu estava enganada.
Cheguei da aula,
depois de uma tarde nada produtiva e fui tomar um banho sem pressa. Demorei um
bom tempo diante do espelho, entretida com cravos e fios desgarrados da minha
sobrancelha, e depois me deixei ficar embaixo do chuveiro.
Apesar de não
desejar refazer nenhuma das minhas matérias no próximo ano, eu não estava com a
menor intenção de estudar – e mais uma vez havia passado a aula inteira no tumblr. Do mesmo modo que eu realmente
queria emagrecer, mas simplesmente não pude resistir a um brigadeiro durante o
intervalo.
Eu pensava
justamente sobre estas contradições no meu comportamento e em como meus dias
estavam se arrastando sem o menor sentido nos últimos tempos, quando minha mãe
gritou alguma coisa da cozinha.
- O que? –
perguntei.
- Não se esqueça
de fechar a janela do banheiro depois do banho!
- Está bem. –
respondi enquanto revirava meus olhos, afinal todos os dias ela dizia a mesma
coisa.
Saí do
banheiro e fui para o meu quarto, enrolada na minha toalha de girassóis,
absorta nas minhas divagações filosóficas. E as minhas conclusões não estavam
sendo nada promissoras. Eu não havia feito nada relevante nos últimos dezessete anos da minha vida e
olhando para trás eu percebia claramente como eu sempre estivera esperando por algo.
Quando eu era
criança, achava que magicamente embarcaria em uma grande aventura, como as que
eu assistia nos desenhos animados e filmes. Ao entrar na adolescência, passei a imaginar que um
amor arrebatador dissolveria todos os meus problemas e preencheria todos os
setores da minha existência.
E agora, já quase saindo da adolescência, eu
passava meus dias, aguardando o momento em que descobriria meu verdadeiro talento
e com isto toda a minha vida passaria a ter sentido. O padrão estava claro e a faísca de
compreensão estava quase se acendendo na minha cabeça quando minha mãe berrou
da cozinha de novo.
-
Fechou a janela?
- Não. Estou
me vestindo, depois eu fecho.
- Se um
morcego entrar, você que vai dar um jeito de por ele para fora.
- Até parece
que um bicho vai invadir a casa, só porque eu deixei a janela aberta por cinco
minutos.
Vesti meu
pijama, joguei minha toalha no ombro e fui para o banheiro. Assim que olhei
para dentro, encontrei um par de olhos âmbar que me encarou. Meus lábios se
abriram, mas nenhum som não saiu, provavelmente porque meu cérebro estava
usando toda a sua capacidade de processamento para tentar entender o que aquele
lagarto de quase um metro (contando a cauda, claro) fazia na frente do box, em
cima do tapete azul da minha mãe.
Num movimento delicado, para não assustar o
bicho, peguei a maçaneta com a ponta dos dedos e fechei a porta suavemente. E
só então constatei a ironia da cena: um bicho invadira a casa porque eu deixei
a janela aberta por cinco minutos.
Encostei
minhas costas na parede do corredor e cocei meu cabelo tentando pensar em como
retirar o réptil da casa sem que minha mãe soubesse. A primeira alternativa era
esperar que o bicho fosse embora sozinho, porém ele poderia simplesmente não
ir. E de qualquer jeito, para saber se o bicho foi ou não embora, eu teria que
checar o banheiro de tempos em tempos e o lagarto poderia muito bem escapar quando
eu fosse espiar para dentro. Assim, o único modo de ter certeza de que o réptil
sairia do banheiro, era eu mesma espantar o bicho. Mas como eu faria isto?
-
Até parece que é só eu pedir com jeitinho. – murmurei enquanto roia as unhas.
- O que você
está resmungando aí? – perguntou minha mãe atrás de mim e antes que eu pudesse
responder ela continuou – E por que você fechou a porta do banheiro?
- Por causa do
vapor.
- Você tomou
banho quente com este calor, está maluca? – inquiriu ela e em seguida franziu
as sobrancelhas – E esta toalha molhada? – reclamou ela e afastou-se apressada
na direção da cozinha carregando a minha toalha de girassóis – Custa pendurar
lá fora?
Sem mais
dúvidas de que eu precisaria me livrar do lagarto logo se não quisesse que
minha mãe o visse, virei a maçaneta hesitante. Empurrei a porta delicadamente,
centímetro por centímetro, e fiquei pronta para encontrar a criatura verde me
encarando.
-
Por favor, não esteja mais aqui. – sussurrei – Por favor!
- Resmungando
de novo? – inquiriu minha mãe, enquanto passava por mim e escancarava a porta
do banheiro.
Os músculos
dos meus ombros se contraíram e com minha respiração suspensa fiz uma busca
visual por todo o banheiro. Mas não havia mais nenhum lagarto. Será que eu
estava ficando maluca e tinha imaginado tudo?
- Aquele
rapaz, que mora no fim da rua ainda estuda com você?- perguntou minha mãe que
ignorava o meu estado de confusão mental e vasculhava o armarinho do banheiro.
- O Douglas? Estuda,
sim. Por que?
- Nada. Só que
como vocês são vizinhos, ele bem que poderia te chamar para um cinema.
- O Douglas me
chamar para um cinema? – repeti com uma risada – Até parece que o cara mais
gato da minha sala vai me convidar para alguma coisa.
- Por que não?
E antes que eu
pudesse responder que o Douglas mal sabia que eu existia, o telefone tocou.
Minha mãe me deu um sorriso vitorioso e eu revirei os olhos indignada. Caminhei
até o meu quarto, inconformada com as ideias insanas da minha mãe, deitei na
cama e atendi o celular preguiçosamente.
- Alô!
- Alô,
Fernanda? – disse a voz masculina do outro lado da linha.
- É ela.
- Aqui é o
Douglas.
Afastei o aparelho
do ouvido e olhei confusa ao meu redor e depois para o celular.
- Oi, Douglas.
- Você se
lembra de mim, né?
- Claro.
- Ótimo.
Queria saber se você não quer fazer nada hoje? Tomar um sorvete talvez.
- Pode ser.
- Legal. Passo
na sua casa em vinte minutos, então?
- Vinte
minutos.
Levantei da
cama e conclui que das duas uma: ou aquilo era uma brincadeira muito sem graça
que estavam armando para mim ou talvez eu estivesse dormindo e tendo o sonho mais
pirado de todos.
Abri o armário
e fiquei encarando as roupas nos cabides ainda sem acreditar que o Douglas
acabara de me ligar. E foi neste momento que eu me lembrei do lagarto do
banheiro e ponderei que era esquisitice demais para um dia só.
- Devo estar
sonhando, só pode! Mas já que estou sonhando mesmo, eu pelo menos poderia ter
algumas roupas incríveis neste armário, não? – disse eu fechando o armário e
abrindo-o novamente logo em seguida.
Como nada
aconteceu, peguei um jeans qualquer e uma blusa preta e os joguei sobre a cama.
Eu procurava um sapato, quando meu telefone tocou novamente. Corri até o
celular e com desgosto li o nome do meu ex-namorado no visor.
- Por que você
não morre? – esbravejei.
No mesmo
instante o aparelho parou de tocar. Com o coração disparado, larguei o celular
na cama e dei um passo para trás. Minha cabeça girava num turbilhão de
suspeitas malucas, quando o aparelho começou a fazer barulho novamente.
Felizmente,
era o mesmo chato da ligação anterior, e eu suspirei aliviada.
- Até parece que
é assim fácil, é só querer e acontece.
No instante
seguinte, repeti mentalmente minhas próprias palavras. Eu acabara de encontrar
a origem dos meus problemas existenciais. E talvez também o meu verdadeiro
talento: a filosofia, por que não?
Mas não pude
me felicitar por muito tempo, porque um grito estridente interrompeu meus
pensamentos.
- Tem um
lagarto aqui! – berrou minha mãe do corredor, logo após bater a porta do
banheiro.
E antes que eu
pudesse fazer qualquer movimento, a campainha tocou.
- “Espero que
o Douglas não se incomode em me ajudar a espantar o lagarto antes do sorvete.“
- pensei enquanto seguia para abrir a porta.