O turno da noite me faz pensar. Fico
aqui sozinha e acabo matutando em como minha vida poderia ser diferente. Afinal,
eu já tenho dezenove anos! Por que estou aqui sentada atrás do balcão deste
hotel? Eu deveria estar descobrindo o mundo. Já estamos em 1968 e nos dias de
hoje uma garota pode fazer mais do que apenas se casar e ter um punhado de
filhos.
A neblina está cada vez mais
densa lá fora. Quando cruzei o "caminho das velhinhas" (todo mundo
com menos de vinte anos o chama assim, mesmo que seu nome oficial seja "caminho
da igreja") já estava bem difícil de enxergar e, como sempre, eu achei ter
visto alguém espreitando entre os arbustos. Mas, foi só impressão minha.
Acho que vi um vulto na porta de
vidro, onde está o porteiro quando preciso dele? É por isto que eu detesto
ficar aqui a esta hora. Puxa, era só o Antônio da contabilidade. Só não sei o
que ele está fazendo aqui, afinal o hotel é da família dele e, portanto, ele
não precisa fazer horas extras.
Dizem que era dele o buquê que
recebi no meu aniversário, mas não havia nome no cartão e prefiro acreditar que
foi outra pessoa. Minha mãe o consideraria um ótimo partido, mas ele me dá
arrepios. Provavelmente pelo fato de sua última namorada, a Maristela, que, era
a recepcionista aqui há uns dois anos, ter se suicidado. A garota ter se
atirado de uma das janelas do terceiro andar do hotel na véspera do noivado
deles certamente não é um bom sinal.
Bem, vou pegar um livro da
estante de achados e perdidos para me distrair. Opa, sou tão desastrada que ao
puxar um livro da prateleira de cima, derrubei outro. Ao juntar o livro, que caiu
aberto na primeira folha, percebi um nome rabiscado com letras bem desenhadas
na primeira folha. “Deve ser o nome do antigo dono.”, pensei e então li: “Maristela
Farias”.
Certo, foi só uma coincidência o
livro da garota morta, cujo namorado provavelmente me mandou flores, ter caído
na minha cabeça. Não acredito nestas coisas, sou uma garota moderna. Mas como
perdi totalmente a vontade de ler, o que vou fazer para passar o tempo? Ainda
são sete e meia, e eu só saio às dez.
Perfeito, acabou a luz. Vou
dormir aqui sentada. Socorro, alguém segurou meu braço! Agora é o momento em
que eu deixo de ser uma garota moderna e grito pela minha mãe? Ufa, era só o porteiro
e ele pediu para eu subir e levar uma lanterna e fusíveis para o Antônio dar um
jeito na luz, enquanto ele cuida de recepção para mim.
Segundo o porteiro, como o cofre
fica lá em cima, ele não tem autorização para subir (por estar armado), mas eu acho
que ele está com medo. Todas as camareiras dizem que o terceiro andar é
assombrado pela avó do Antônio, que morreu aqui há uns dez anos. Sem falar da
Maristela. Mas por que fui me lembrar de tudo isto logo agora?
Cansei, quantos degraus! E por
que as cortinas estão balançando tanto aqui em cima? Não me lembro de estar
ventando lá fora. Vejo uma luz pela fresta da porta da contabilidade, o que
significa que o Antônio já tem uma lanterna. Mas se ele está lá, de quem são
estes passos atrás de mim. E que mão gelada é essa que segurou o meu pulso?
Acho que vou desmaiar.
Não há nada aqui, mas eu juro ter
ouvido um "Vá embora", sussurrado por uma voz feminina, ao mesmo
tempo em que a lanterna que eu trouxe apagou. Talvez eu esteja alucinando, mas
mesmo assim melhor eu sumir daqui. Não que eu seja supersticiosa, mas para que arriscar?
Talvez eu não desça. Não gostei
nenhum pouco de uma sombra parada no meio do corredor, bem no caminho para a
escada. E agora? A porta do arquivo morto (nome sugestivo, não?) escancarou-se
de repente e uma rajada de vento gelado invadiu o corredor espalhando uma fina
película de névoa pelo ambiente. Dei um passo para trás, enquanto a sombra se
aproximava lentamente.
Dedos gélidos tocaram no meu
braço novamente. "Está vindo atrás de você", murmurou a voz. Sem
pensar, atravessei o corredor o mais rápido que pude e entrei na sala da
contabilidade. Havia uma vela acessa sobre a mesa, mas o lugar estava vazio.
Caminhei até a janela e só pude ver a massa acinzentada de neblina que cercava
o prédio.
Subitamente o reflexo de uma
garota loira e com o rosto coberto de sangue apareceu no vidro ao meu lado.
Virei num pulo, mas não havia nada ali, eu continuava sozinha. A porta do
banheiro abriu lentamente com um rangido e eu respirei aliviada. "Antonio,
que bom que você está aí.", exclamei.
Mas não era o Antônio que acabara
de sair do banheiro. Na minha frente, estava uma mulher grisalha, enrugada e
transparente. A avó de Antônio, eu a reconheci de uma foto da recepção. O grito
ficou preso na minha garganta, enquanto eu não podia acreditar no que eu estava
vendo. “Só posso estar sonhando!”, conclui.
“Não vou deixar que você repita o
que fez comigo”, disse a voz que eu ouvira antes. Com o canto dos olhos,
avistei uma jovem loira, ensanguentada e tremeluzente a minha direita. A velha
não pareceu preocupada com a ameaça e esboçou um sorriso assustador. As duas
pareciam prestes a se atacar, quando a porta do corredor se abriu e ambas
desapareceram.
“Ah, você está aqui”, exclamou
Antônio. Apenas sacudi a cabeça afirmativamente. “Trouxe os fusíveis?”,
perguntou ele. Mas antes que eu pudesse responder, arregalei os olhos ao
perceber uma mão pálida tombar a vela que estava sobre a mesa.
Rapidamente, o fogo se espalhou
pelos papéis e logo alcançou o chão se espalhando pela sala. Dei um passo para
trás, para me afastar das labaredas que tomavam tudo ao meu redor e senti duas
mãos sobre o meu peito. No instante seguinte, um empurrão violento me jogou
para trás, atravessei a janela e despenquei rodeada por cacos de vidro.
Abri os olhos assustada. “Ainda
estou viva?”, pensei. Então, percebi que estava sentada na minha cadeira da
recepção, no escuro. “A luz acabou e eu peguei no sono, foi isto.” Fechei os
olhos e soltei um longo suspiro de alívio. Ao abri-los novamente, um rosto coberto
de sangue me encarava. Coloquei a mão na boca para conter um grito, enquanto a
jovem loira falava “Vá embora.”
Sem hesitar, levantei e chamei um táxi.
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